Não pense você que as facilidades tecnológicas disponíveis a qualquer clique de seu mouse farão algum serviço sozinhas. Se elas disponibilizam ferramentas antes restritas a estúdios de gravação, e todo um arsenal de gadgets que possibilitam a diletantes munidos de curiosidade e boa vontade a confecção de material com embalagem profissional, são eles, os detalhes, quem realmente (e mais uma vez) farão a real diferença. O Desfigurados, criado por Adriano “Pedrão” Effgen, músico natural do ABC paulista com experiência em diversas bandas underground da região, mostra o caminho das pedras para qualquer aspirante a one man band que também acumule a função de produtor: sonoridade irretocável, composições bem estruturadas, influências diversas (e equalizadas com grande equilíbrio), peso e velocidade sempre em doses maciças. Recomendamos fortemente que você conheça esse projeto – e o próprio Adriano nos conta mais a respeito dele e de seu mais novo álbum, “Verdade Ilusória”, linkado nessa mesma página para vossa imediata apreciação. Segue o papo!
Monophono: O ganho obtido em “Verdade Ilusória”, em relação ao primeiro registro do Desfigurados, é notável. Era certo em sua cabeça buscar algo mais variado agora, em relação ao “Padrão Final”? Ou tudo aconteceu naturalmente?
Adriano Effgen: As músicas do “Padrão Final” são bastante antigas; tinha a maioria delas gravadas em fita K7, e muita vontade de oficializar esses registros. “Verdade Ilusória” soa com uma cara mais atual a meu ver, sem deixar de lado algumas pitadas daquele som anterior. São composições mais recentes, influenciadas simplesmente pelo meu dia-a-dia. Toda hora surgem dezenas de bandas novas, se me agradarem, escuto com certeza; mas eu aprendi a ouvir coisas mais antigas que antes nem me passavam pela cabeça comprar um disco, por exemplo. Foi uma evolução paulatina, mas que ocorreu de maneira natural.
Monophono: A mim as influências mais perceptíveis são bandas de Hardcore brasileiro, Ratos de Porão e Ação Direta (pós-Massacre Humano) em especial, mas com algo de Lobotomia também. Em quê esses nomes funcionaram como referência pra você?
Adriano: Não que elas sejam inspiração direta minha, mesmo que talvez sem intenção acabe soando naturalmente parecido. Ouvi e ainda ouço muito essas bandas, entre outras; são os maiores nomes do estilo no nosso circuito Underground. Riffs simples, objetivos e marcantes; bateria rápida que espanca nosso cérebro e nos faz querer tocar no ar. Todas possuem letras que causam reflexão, e lançam a ideia de como precisamos estar sempre alertas. Gosto disso no processo de escrever algo, o de fazer a pessoa despertar sobre algum tipo de inserção forçada ou alguma intolerância que nos é terceirizada. Aliás, muitos desses ignorantes acreditam que nós não sabemos pensar.
Monophono: Nota-se agora, na construção/duração das músicas, uma presença bastante acentuada de metal – Slayer e Metalcore, as duas coisas que mais me saltaram às vistas, entre outras. O estilo foi fundamental para a criação de Verdade Ilusória?
Adriano: Procurava algo mais denso e brutal musicalmente em relação ao primeiro, com certeza. Imaginei esse disco com diversos temperos diferentes, sempre dentro de um estilo ríspido e pesado. Posso estar enganado, mas a ideia era lembrar um Thrash mais tradicional, veloz sem perder o Punch, talvez com um pouco da energia Crossover até chegar em alguma coisa mais Death. Tomara que tenha conseguido.
Monophono: “Divina Existência” é uma das melhores do álbum, um Crust mais tradicional. Esse é seu habitat natural?
Adriano: Essa música era de uma banda já extinta da qual fiz parte, o Disgosto, e sua regravação deu-se principalmente pela letra, que se encaixava perfeitamente com a temática do álbum. O Crust foi um estilo que ouvi muito quando mais novo; talvez por buscar um algo a mais na sonoridade que as bandas Punks não ofereciam, e por não ser tão macabro quanto se apresentavam algumas bandas de Metal da época (e que a gente nem conseguia tocar). Era a dosagem perfeita. Ainda gosto muito de som Crust, mas aprendi a desenvolver também outros interesses sonoros.
Monophono: Também em linha mais Crust, “Doutrina Papal no Cu” escancara uma mensagem anti-religiosa presente inclusive em outras canções, diretamente ou não. Sua postura pessoal em relação ao assunto é tão radical quanto as letras fazem sugerir?
Adriano: “Doutrina…” também é um cover, esse do Tujerpiis, da qual também fiz parte (e os caras estão na ativa até hoje); é mais uma letra que se encaixou como uma luva. Veja bem, eu não diria radical. Moramos em um país livre e cada um faz o que quer da sua vida. Se pra fulano faz bem ir à igreja, ler a bíblia, essas coisas, tudo bem… FAÇA. Temos que praticar ações que nos fazem sentir bem. O que é inadmissível ao meu ponto de vista é um deturpado malandro se passar por um cidadão de bem e brincar com a fé alheia, atordoar a fragilidade das pessoas. A leitura bíblica é fantasiosa e traidora, são várias interpretações diferentes em uma mesma frase, não é algo concreto. E eles utilizam isso para se vangloriar. Nenhuma igreja te obriga a nada (ainda não voltamos ao tempo das cruzadas, pelo menos não em terra brasilis), mas não recusa o dízimo de um pai de família desempregado que recebeu auxílio emergencial pra criar seus filhos, pagar aluguel, comer, vestir, etc. Por outro lado, se faz bem para o pai contribuir achando que vai aumentar sua credibilidade com o divino ou sei lá o quê, ninguém tem nada a ver com a decisão dele. É complicado… “Dinheiro” e “Deus” são palavras que sempre andaram de mãos dadas, não para o povão desesperado, mas para um determinado nível hierárquico religioso sujo e hipócrita. Sei que não são todos os líderes que praticam essas crueldades, tem gente que tá aí pra ajudar de verdade, mas a falcatrua de outros está escancarada, pra quem quiser ver. A fé que te orienta sustenta as cifras deles.
Monophono: A parte gráfica investe em um conceito uniforme desde o primeiro álbum: a descaracterização do cidadão moderno. Você cuidou de tudo também na área visual? Esse “apagamento” do ser humano do século 21 é inevitável?
Adriano: Certa vez, antes de ter a ideia da banda, lia algumas coisas na internet e me deparei com uma história estrangeira de uma senhora camponesa que confeccionava máscaras para os desfigurados de guerra não retornarem para casa com a aparência mutilada – daí surgiu o nome do projeto. Repare que hoje em dia não precisamos mais colocar a nossa “cara” pra bater ao expressar opiniões sobre tudo o que acontece, ou seja, todos temos mais coragem e atitude atrás de uma tela para opinar sobre um determinado assunto que sequer conhecemos direito, ou que apenas ouvimos falar (e nem sabemos se é verdade ou não). O avanço da tecnologia às vezes me espanta, e não sei se gosto muito disso. Creio que seja inevitável um apagamento intelectual humano devido justamente a essa facilidade de recursos na palma da mão. Ou utilizamos isso a nosso favor, ou a inteligência artificial o fará. A internet sabe tudo de nós e nós não sabemos nada dela. Somos todos desfigurados virtualmente.
Monophono: Bateria programada/eletrônica não é novidade no Rock (de Mulheres Negras a Mortician, isso sem contar todo um gênero surgido a partir dela, o Industrial), encaixou-se perfeitamente no trabalho do Desfigurados, mas sempre divide opiniões. Você mesmo teve alguma resistência em relação a isso? Foi sua opção desde o início?
Adriano: Antes do pontapé inicial do projeto fiquei muitos anos sem tocar em lugar nenhum, devido à mudança de cidade, faculdade, nascimento de filhos, etc. Mas isso não é uma desculpa convincente; quem quer, faz acontecer! Por opção minha, precisei sacrificar o lado músico por um tempo pra ajeitar um pouco a vida. E, nesse intervalo, acabei me interessando pelo assunto “Home Studio”, área muito ampla, que vai bem além do tocar um instrumento. Banda de verdade é comprometimento, ensaios e despesas diversas; sem isso, nenhuma vai pra frente. Encontrei na bateria virtual uma ótima opção para não assumir um compromisso físico neste momento, e ainda assim me realizo bastante. Porém, acredito que nada substitui uma reunião de amigos com um objetivo em comum, com vontade e disposição pra fazer um som e transmitir uma mensagem importante a todos que estiverem dispostos a ouvi-la – regado a muita cerveja, claro (risos).
Monophono: Gravação, execução, composição – qual processo foi o mais trabalhoso e demorado no “Verdade Ilusória”, e por que?
Adriano: Uma música pra mim está pronta quando eu “desisto” de criar alguma levada ou Riff pra ela. Gosto muito de passagens, transições e de saber separar cada parte sonora – é muito importante não parecer enjoativo; informação demais em um mesmo som acho que atrapalha um pouco. Compor foi bem complicado, devido a uma pessoa só ser a cabeça pensante para todos os instrumentos. Às vezes eu brigava comigo mesmo porque gostava de alguma coisa na hora que criava, e, ouvindo no outro dia, já não curtia mais (risos). A segunda opinião que tinha era enviar o som a amigos e aguardar um feedback – isso foi muito válido em todo o processo de composição. O disco conta com uma intro, quatro temas inéditos e dois covers de bandas em que toquei, as quais achei interessante relembrar. Gravação e execução rolaram tranquilas; testei alguns timbres e cheguei a um resultado a meu ver satisfatório.
Monophono: Quais são seus planos em relação à prensagem do álbum? Planeja lançá-lo em algum formato físico? Se sim, como será e quando a(s) veremos?
Adriano: A ideia é sim, porém, sem previsão de lançamento. Para toda gravação que qualquer banda faça, o objetivo principal é sempre divulgar o som o máximo possível. Prensar uma mídia física é muito importante para essa que disseminação aconteça. As plataformas digitais estão à disposição de todos; talvez, pela facilidade de se ouvir música através de um clique, isso as torna bastante atrativas. Mas eu ainda acho prazeroso comprar um disco e folhear um encarte, admirar um trabalho bem feito e ainda colaborar com algum nome independente.
Monophono: Existem planos de sua parte para levar o Desfigurados aos palcos? Ou é um projeto exclusivamente de estúdio?
Adriano: Ser uma one man band facilita pelo lado de fazer as coisas no meu tempo, tudo com calma e organizadamente. Porém a energia de se ter uma banda real é fantástica – é ali, na hora da apresentação, que captamos o verdadeiro feeling das pessoas em relação a nosso trabalho. Sem palavras quanto a isso! Oxalá apareçamos em breve com disco na mão e algumas datas fechadas, torço muito pra que isso aconteça. Quem sabe um dia…
DESFIGURADOS – VERDADE ILUSÓRIA
DESFIGURADOS – PADRÃO FINAL