PANDEMIA E A(S) DOENÇA(S) DO MUNDO: UMA CONVERSA COM CARLOS LOPES, GUITARRISTA/VOCALISTA DO DORSAL ATLÂNTICA

Carlos Lopes – foto por Michael Meneses

“Pandemia”, o disco, é o quarto lançamento da Dorsal Atlântica desde o retorno em 2012. Guarda semelhanças com os anteriores (“Canudos”, “Imperium”, 2012), mas também traz novidades: a brasilidade atinge picos notavelmente radicais (os experimentos de Carlos Lopes com a guitarra baiana mostram-se cada vez mais incorporados à velocidade do metal); a temática historiográfica, centrada desta feita no liquefeito momento imediato, não mais no passado estanque; a verve sardônica aflorada como nunca, ao mesmo tempo aguda e desalentada, características unas de todo texto satírico que faça jus à designação. Mais um substancial pedaço da história de nosso rock pesado, escrito por alguém versado tanto em história quanto em estórias – e que, aqui, congrega criatividade e ativismo em sinergia simbiótica.

O guitarrista/vocalista, que agora reside na capital federal Brasília, cedeu um naco de seu ocupadíssimo cotidiano para responder a algumas questões do Monophono – e, em uma obra tão rica em simbologias como “Pandemia”, o que não falta são indagações, as quais Lopes está sempre aberto a clarificar ou debater, com a disposição de quem sabe que conhecimento é soma, jamais subtração. A primeira parte vem logo a seguir; a segunda, publicamos amanhã. Boa leitura!

Monophono: O mundo é doente, ou o mundo está doente?

Carlos Lopes: Auspicioso início, hein (risos)? Levando em consideração a história de toda a humanidade, a primeira opção.

Monophono: Estética é política? Ambos se confundem, ou se completam?

Lopes: O pensamento comum condena a política, mas ela faz parte de nossas vidas. Quando se trata alguém com respeito isso também pode ser chamado de política – e no bom sentido. Não tem nada a ver com falsidade, mas sim em se preocupar com o outro. Porém, é bem mais fácil tirar o fardo das costas ao apontar o dedo, quando somos todos humanos e falhos. Estética tanto é alguém que faz intervenção estética, por ego ou necessidade, assim como pode ser o estudo das relações humanas através da arte. Comparando com minha trajetória artística, cada passo que dei, e prossigo dando, foi sempre motivado por questões estéticas e políticas somadas.

Monophono: Por falar em estética, você atualmente sente existir uma necessidade de maior agressividade para passar a mensagem pretendida? O Heavy Metal seria a única forma de supri-la?

Carlos Lopes: Tanto o nível quanto o conteúdo da mensagem dependem sempre do emissor e do receptor. Uma pessoa bem sucedida, que é ouvida, seguida por um determinado público, também pode estar mentindo. Todos podem estar equivocados, mas, se são parte de uma bolha, de um nicho, se fortalecem, assim como ocorre no Metal, em grupos extremistas e nas Igrejas neopentecostais. Em uma sociedade capitalista, só importa o sucesso financeiro, não o humano. A maioria adora uma celebridade, de qualquer segmento, e ninguém quer saber se tal “famoso” ascendeu graças à mentira, ao tráfico de drogas, armas e almas. Por isso, a política e as religiões são as maiores culpadas. Aqui mesmo, perto de casa, em Brasília, na semana passada, uma cantora foi ofendida por um cliente, chamada de “macaca”, e uma menina tirando dinheiro de um caixa de shopping próximo foi ultrajada por uma senhora atrás dela com termos do mesmo nível. O Heavy Metal é um repositório de clichês de fala, comportamentais e pretensamente musicais – ou seja, nada de diferente do mundo externo. E ainda insistem em chamar de contracultura… Desde que ajudei a fundar o movimento no país, vi, e acompanhei muito bem, o monstro crescer do berço até se corromper, se transformar no que supostamente combatia. Venho denunciando tudo isso há décadas, pelo menos desde os anos 1990, e literalmente cansei. Teve que rolar o caso da Prevent Senior em 2021 para a sujeira enfim vir à tona.

Monophono: A raiva é um ingrediente em seu processo criativo? O quanto a música ajuda a domá-la?

Carlos Lopes: Raiva não… Mais indignação mesmo. Havia decidido parar de gravar com a Dorsal quando lançamos Canudos, em 2017. Ali estavam (e estão) as marcas e sugestões para um novo estilo de rock pesado brasileiro que sonhava há décadas, mas que somente nesse álbum consegui concretizar. Ficaria encantado se houvessem mais bandas desejosas de desenvolver uma cultura nacionalista/regional ao invés de sonhar com globalizações que somente descaracterizam os povos. Mas aí, após o Canudos, fui tratar da vida, e o Bozo, aquele mesmo, foi eleito. Até aí, fiquei indignado, mas tinha mais o que fazer. E veio a pandemia, em março de 2020. O cenário de terror, de negacionismo, se alastrou. O Brasil se revelando. As pessoas se mostraram como são de verdade. Minha indignação me cobrou: faça algo! O disco surgiu: letras, conceito, composições. Perguntei-me várias vezes se era uma viagem minha ou se poderia ser um álbum realmente relevante e revelador. Deixei que o público mais uma vez julgasse, através de campanha de financiamento – e me foi dado o sim.

Carlos Lopes – foto por Dani Dread

Monophono: Já que tocou-se no assunto, vou aproveitar: como você encontrou enfim um meio particular de expressar-se através do Heavy Metal, com ênfase em melodia/brasilidade?

Carlos Lopes: A Dorsal estava fadada a acabar na época do show no festival Monsters of Rock em São Paulo (1998). Nesse período, escrevi a biografia da banda – e da cena -, e gravamos o nosso único disco ao vivo oficial. Por querer continuar a compor, fundei duas novas bandas, a Usina Le Blond, focada em Rock, MPB e Soul, e também dei início à Mustang, mescla de música popular brasileira com pré-punk. Isso me aproximou mais e mais do Brasil e do rock que ainda me interessava. Já não escutava som pesado desde 1995, pelo menos. E ouvia MC-5, Turbonegro, Bowie, música africana, Cartola e Carmen Miranda. Então, em 2012, recebi um convite da produção do festival M.O.A. no Maranhão para fechar o evento, tendo como bandas de abertura o Exodus e o Anthrax. Negaram-se a pagar o cachê para voltarmos após 11 anos, então eu recusei. Mas o convite me chamou a atenção para um possível retorno, desde que não envolvesse shows. E uma vizinha, que havia acabado de fechar as portas de sua agência de publicidade, me falou sobre financiamento coletivo no exterior… Como eu já havia me arriscado, vamos dizer assim, em pedir apoio ao público para tocarmos no Monsters of Rock, acreditei que pudesse fazer parte de uma nova forma de interação artística no país, e dei as caras. Foi desafiador, mas deu muito certo e voltamos a gravar.  Contudo, a Dorsal só poderia retornar renovada, cada vez mais brasileira, com todas as lições aprendidas com a Usina Le Blond e o Mustang. E assim, disco após disco (2012, “Imperium”, “Canudos” e “Pandemia”), o projeto de contribuir para o desenvolvimento de uma nova estética, desapegada do que ocorre no exterior, foi empreendido e bem-sucedido. E em 2022 comemoramos uma década deste retorno.

Monophono: Qual o seu maior desafio hoje, como músico e compositor? A experiência de tantos anos torna tudo mais rápido, ou exacerba ainda mais seu lado detalhista/obsessivo?

Carlos Lopes: No final das contas o que importa é que o trabalho seja inspirado e relevante o suficiente. Sobre a questão obsessiva e detalhista, tenho trabalhado sobre isso há décadas, para ser sincero, mas também não se pode negar quem você é, ou acredita que seja.

Minha média diária é trabalhar de dez a doze horas sentado, até porque a maior parte do que produzo é escrita e ilustração. Para empreender essa nova tarefa, a do retorno da Dorsal aos estúdios, foquei em duas questões: primeiro, deixei de usar guitarras “normais”, só toco guitarra baiana; e a mais importante (e pouco perceptível) é que as melodias se abrasileiraram ao ponto de serem impossíveis de serem escritas por qualquer artista estrangeiro – e também por artistas colonizados brasileiros, inclusive. Em certo sentido, há público para todos, mas esses públicos são influenciados pela propaganda, pelo investimento financeiro, e a sua escolha “livre”, a sua liberdade de expressão, é determinada por intermediários que incluem selos, distribuidores, assessores, imprensa, empresários e agentes. 

Monophono: Existe a preocupação nos discos recentes da Dorsal em se historiografar o Brasil. Quais padrões mais evidentes você encontra nessa busca, em relação a procedimentos/comportamentos/alma do país, independente do período retratado?

Carlos Lopes: Na verdade, sempre escrevi sobre o Brasil. As composições ”Império de Satã”, “Armagedom” e ”Catástrofe”, três faixas gravadas para o ‘inocente’ Ultimatum em 1984, são todas sobre a ditadura brasileira e seus personagens. Em 1986, o Antes do Fim inteiro versava sobre esse mesmo período, mas para não me referir a ele diretamente, usei subterfúgios, como citar o nazismo e um assassino latino nos EUA. O Searching for the Light também fala do país, tirania, a nossa ilusão de democracia, mas dialoga mais diretamente a respeito de nossa elite e aos interesses do capital (internacional, inclusive). E foi neste álbum que, pela primeira vez, escrevi sobre questões inconscientes e espirituais.

Monophono: Historiografou-se primeiramente o passado (Imperium, Canudos), e agora, com Pandemia, o presente imediato. Qual a diferença para ambos os processos? A intensidade de estar no olho do furacão, ou a riqueza de dados de algo já documentado?

Carlos Lopes: Em 1981 quando prestei o vestibular, tive que escolher entre ser historiador, ilustrador, músico ou jornalista, e o jornalismo me pareceu mais fácil, porque eu queria mesmo era tocar, e a faculdade era uma desculpa para ter um diploma (minha mãe fazia questão do “canudo” para eu “não ser preso em uma cela comum”). Mas nunca abandonei o amor pela história do Brasil, pois, além de amar o país e sua cultura, sempre quis entendê-lo para me entender, para nos entendermos. O Brasil (vide o bozonarismo) é uma nação que pouco aprendeu com a própria história, permanece até hoje aliado a nazistas e escravocratas. É um país que poderia ser enorme, mas que se apequena em sua orgulhosa mediocridade. Os quarenta anos de carreira me ajudaram no quesito composição e produção a não seguir cartilha de ninguém. Discos como 2012 foram feitos rapidamente, entre duas semanas e um mês. Os dos anos 80 e 90 levavam anos para serem escritos. Mas isso não quer dizer que os trabalhos atuais sejam inferiores ou menos criativos do que o material composto no período dos shows ao vivo. É exatamente o contrário: os álbuns do retorno são independentes do mercado, e mais inventivos do que todos os que compus antes, sem tirar os méritos musicais e históricos de obras como Dividir e Conquistar e Searching for the Light.

Aguarde: em breve, a parte 2 desse papo! Aproveite para conferir aqui a resenha sobre o álbum “Pandemia“.

Confira abaixo o mini-documentário de “Pandemia“:

 

 

 

Um comentário em “PANDEMIA E A(S) DOENÇA(S) DO MUNDO: UMA CONVERSA COM CARLOS LOPES, GUITARRISTA/VOCALISTA DO DORSAL ATLÂNTICA

  1. Som Legal, música e letra cumpre o propósito do Grupo DORSAL. Gostei também da bela e interessante entrevista do Líder Vocal CARLOS LOPES. Parabéns e muito Sucesso para a BANDA DORSAL ATLÂNTICA ótimos representantes do Heavy Metal Nacional !!! PAES.

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