PANDEMIA, DA DORSAL ATLÂNTICA: ARTE É POLÍTICA, CRIAÇÃO É FORTALEZA, AÇÃO É LIBERDADE



O que é um “conceito”? Pelo dicionário, “compreensão que alguém tem de uma palavra; noção, concepção, ideia”. “Disco conceitual”, portanto, começa, antes de tudo, com uma ideia. A partir dela, desenvolve-se uma história, desenrola-se um novelo, e somente quem é hábil o bastante em costurar narrativas sabe o que/como fazer – ser músico ou compositor ainda é pouco; torna-se necessário quase um espírito dramatúrgico para transformar esse fio condutivo inicial em um cenário, em dar forma à diegese de modo a direcionar o ouvinte, e, importante, fazer com que a fórmula sempre se renove em si mesma, evitando a acomodação ou a repetição enfadonha. Não à toa, apenas colossos criativos, artistas revolucionários do porte de Alice Cooper, Pink Floyd, David Bowie e Frank Zappa apostaram suas fichas nos tortuosos (e recompensadores) caminhos conceituais – e, sem surpresa, tanto Bowie quanto Cooper enveredaram posteriormente pela atuação propriamente dita, tamanha a vocação para a dramaticidade que gritava dentro de ambos. Não basta ser gigante: é necessário ser multifunções, e exímio em elas todas.

O que é “resistir”? Um de seus significados é “conservar-se firme, não sucumbir, não ceder”. O retorno da Dorsal Atlântica, em 2012, deveria ter sido festejado por todos os lados, mas encontrou relutância em várias áreas. Uma das que deu mais pano pra manga: a do financiamento coletivo, maneira escolhida para viabilizar seus projetos. O ‘crowdfunding’ engatinhava como ferramenta; a compreensão de seus mecanismos, ainda nebulosa; contar com tal ajuda era um tiro no escuro. Mesmo assim, Carlos Lopes encampou a ideia de frente, se colocou em meio a uma saraivada verbal/ideológica, porém obteve apoio incondicional de fãs que queriam tornar-se parte ativa dessa tão esperada volta (coisa que a nova forma de angariar recursos proporciona). Igualmente causaram celeuma tanto seus projetos pós-Dorsal (em especial o Usina Le Blond, julgado e condenado desde o início pelo uso da palavra “funk”), assim como certas declarações anti-Heavy Metal dadas pelo vocalista/guitarrista durante o período. Sem medo, ele jamais se eximiu do combate – “não sucumbir”, “não ceder”: lemas primeiros de qualquer artista que honre a denominação, e que saiba que o mundo precisa mais dele do que ele do mundo.




Capa de Pandemia por Cristiano Suarez


O que é “inovar”? “Introduzir novidade em; fazer algo como não era feito antes”. O Heavy Metal possui seus códigos, suas cartilhas, seus preceitos básicos que normalmente são considerados dogmáticos e insubstituíveis. O radicalismo atávico move desde sempre os aficionados, que de forma alguma abrem mão de formatos já consagrados e, vez ou outra, batidos à exaustão. Essa repetição hipnótica das mesmas regulações sonoras e estéticas, não adianta negar, e digo isso sem qualquer depreciação, é dos motivos primeiros para seguidores transformarem um mero gênero musical em “estilo de vida” – o que faz do fanático, independente de sua postura política, um conservador nato. Bandas definitivas do metal militam em duas frentes: as que fazem história ao criar/respeitar os cânones, e as que se notabilizam por demoli-los. Como falamos de arte, e por consequência de critérios particulares de avaliação, a corda pode arrebentar de ambos os lados, porém, em viés objetivo, a incompreensão recai usualmente para quem corre riscos – e não são muitos os que se dispõe a colocar a mão nesse vespeiro, pois as ferroadas deixam severas sequelas.

“Pandemia”, lançado pela Dorsal Atlântica em 2021, é uma obra conceitual. Mas não qualquer uma: é imediata; retrata o período “George-Romerístico” que cobre o início do ano passado até aqui. E, se busca expor o horror através do humor (o gênero literário da sátira foi o escolhido por Lopes para deslindar seu discurso), o faz sempre com a faca nos dentes: é como se cada palavra irônica pronunciada vertesse em si o sangue das incontáveis vítimas do Covid-19; o caótico cotidiano pandêmico e a postura do poder público federal perante os acontecimentos são encarados à primeira vista com implacável corrosão, mas também com inevitável tristeza, e mesmo um sentimento de impotência, ao ver se desenhar um roteiro (real) tão lamentável quanto impossível.
Resiste-se por um meio indestrutível, portanto: através da arte, que grita o que via de regra é silenciado; que molda a realidade com acordes, imagens ou versos, ou que utiliza tais elementos como marreta, para trazer vergastadas de real, mesmo que à força, à conveniente ilusão que alimenta o cotidiano dos que se deixaram cegar. O bunker da Dorsal mais uma vez se erige; dali brota lucidez, coerência e disposição para a batalha. E resistir também é inovar: as guitarras brasileiras que Lopes incorporou ao Heavy Metal casam-se assustadoramente bem com levadas D-beat, e assim liberam caminhos para renovação mesmo dentro de certa ortodoxia; ressignifica-se um estilo de dentro pra fora, transmuta-se em inédito algo que nas mãos de outrem apenas dá forma ao corriqueiro. Melodias não são novidade para a banda (o histórico solo de “Álcool”, por exemplo), mas aqui adquirem mesmo um tom operístico (“Terra Arrasada”), com as inflexões do cantor funcionando como um personagem à parte, oscilando entre o raivoso, o mordaz e o desencantado, incorporando empiricamente o polifônico estado de espírito crítico perante a montanha-russa pandêmica. A voz, condutora do discurso e modeladora de seus efeitos, torna-se o principal destaque em um álbum cuja força motriz é justamente a palavra. Nada acidental, diria.

Obra de riqueza irrefutável, “Pandemia” cartografa um período, expõe sem receios uma postura, radicaliza a própria proposta, metaforiza, ri e chora, ofega, se enoja e sente esperança, condensa vertentes artísticas, renova visões de mundo, congrega, denuncia, alforria, dá a todo momento a cara pra bater. Um disco livre, na acepção mais pura que o termo possa ter – e que brilhará como o marco que merece ser considerado ser àqueles tão sem medo quanto ele.

Ouça “Pandemia” na íntegra logo abaixo:

Deixe um comentário